Tiradentes: relembrando dois curtas queer que celebram a mutabilidade de Bruna Linzmeyer
- Juliana Gusman
- 28 de jan.
- 5 min de leitura

Por Juliana Gusman | Críticas
Em sua 28ª edição, a Mostra de Cinema de Tiradentes exalta versatilidade de Bruna Linzmeyer, atriz camaleônica que transita, como poucas, entre a produção audiovisual televisiva mainstream e o cinema independente brasileiro. Na Mostra Homenagem, são exibidos, entre outros filmes, dois curtas de autoria, verve e sangue queer: Uma Paciência Selvagem Me Trouxe Até Aqui (2021), de Éri Sarmet, premiado no festival há três anos, e Se eu tô por aqui é por mistério (2024), de Clari Ribeiro, cuja estreia aconteceu no ano passado, também nas tendas cinematográficas de Tiradentes.
A seguir, compartilho algumas notas sobre essas obras, orginalmente publicadas no site Farofafá e no blog Piracema, da Plataforma Cardume Curtas.
Sobre Uma Paciência Selvagem Me Trouxe Até Aqui (2021)
Uma Paciência Selvagem Me Trouxe Até Aqui (2021) tem levado os afetos sapatões para lugares, até então improváveis, de visibilidade. O curta de Éri Sarmet participou da 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes (onde ganhou os prêmios de Melhor Curta da Mostra Foco e Prêmio Canal Brasil) e do Festival de Sundance, nos Estados Unidos. Em 2021, fez passagem pelo Festival do Rio, pelo Bogotá Short Film Festival e pelo Olhar de Cinema, de Curitiba, no qual foi agraciado com o prêmio de Melhor Curta Brasileiro. Na verdade, a obra, desbravadora, não se exime de tratar explicitamente das barreiras, talvez cada vez mais transponíveis, dos discursos. Não deixa de verbalizar, por exemplo, suas bem-marcadas intencionalidades de “superar a tradição do silêncio”. Evoca, ainda, outras e inovadoras iniciativas cinematográficas do passado que tentaram reconfigurar os arranjos da sexualidade – como os trabalhos de Lizzie Borden e Cheryl Dunye, que abriram caminhos para a boa teimosia das histórias desviadas e desviantes que urgiam aparecer. O título da produção também é um elogio à rebeldia narrativa. Refere-se a um verso do poema “Integridade”, da escritora e ativista Adrienne Rich, que, nos anos 1980, ousou nomear a força ideológica que amputa desejos e que obstaculariza as vidas fora da norma. Uma Paciência Selvagem Me Trouxe Até Aqui confronta e afronta, justamente, a chamada “heterossexualidade compulsória” das nossas artes e da nossa cultura. O corpo lésbico, apesar de tudo, está em cena.
Falamos sobre um filme de encontros: entre essas múltiplas referências, inspirações e aspirações, claro; e, no plano diegético, entre as personagens Vange (Zélia Duncan), Rô (Bruna Linzmeyer), Alice (Camila Rocha), Granado (Clari Ribeiro, que também assina a montagem, com Bem Medeiros) e Ângela (Lorre Motta). A primeira – nomeada em reverência a Vange Leonel, uma cantora e compositora tão combativa quanto aquela que, artista maiúscula, lhe encarna – é uma mulher cinquentenária e incendiária que, ao conhecer o quarteto de jovens em uma festa nos cantos escusos de Niterói (“um point sapatão”!), se surpreende com a possibilidade de existir mais livremente. Afinal, o tempo auspicioso e revoltoso de hoje também é dela. Uma paciência selvagem nos envolve, então, nas dinâmicas desobedientes das redes, dos stories, dos vídeos, das performances e dos compartilhamentos. A todo momento somos interpelades pelas escritas de si hipertecnológicas que atualizam (e potencializam?) o poder emancipatório da linguagem. Outras formas de ser no mundo e de hackear o “Cistema” são colocadas em circulação. E é o que faz, por meio deste curta, o próprio cinema.
Uma Paciência Selvagem é, não obstante, um filme de amor. Para além da urdidura narrativa, por meio da qual as relações intergeracionais vão se tecendo progressivamente em tesão e ternura, há, no trabalho de Sarmet, diferentes recursos enunciativos que reiteram a sua poética e sua política. Em cada detalhe, um manifesto. Não há tempo a perder. A começar pelos créditos iniciais, que reúnem imagens de arquivo, pessoais e coletivas e reconstituem as cartografias das atratividades lésbicas. Sobrepostas pela animação de Tomas Cali, as fotografias acabam revelando, com a afiada intervenção, trocas de olhares e carícias que se esquivam das cis-heterovisualidades desatentas. Elas sempre estiveram ali. O sopro do real também areja o miolo do curta, principalmente por meio do tête-à-tête frontal de Vange, Rô, Alice, Granado e Ângela com a câmera. Ou seria de Zélia, Bruna, Camila, Clari e Lorre? Tão difícil, quanto desimportante, precisar. Personagens e artistas se confundem e se multiplicam quando tentam rememorar, em um registro quase documental, as primeiras sapatonas que conheceram em suas vidas. É um chamado à multidão queer, que não cessa de expandir.
Este pontual embaralhamento identitário talvez seja favorecido pelas biografias des atrizes e atores. Para Sarmet, o projeto demandava o engajamento de pessoas lésbicas ou bissexuais assumidas, capazes de se vincular íntima e responsavelmente com as questões provocadas pela obra. Podemos falar, quem sabe, sobre a necessidade de uma ética de cuidado com o filme. Não por acaso, Uma Paciência Selvagem esbanja acolhimento. As personagens surgem absolutamente confortáveis consigo mesmas e umas com as outras, numa intimidade saborosa erigida nas trocas de conversas, convescotes e cigarros. Elas se amparam e se elevam. É bonito, para citar apenas uma boniteza, quando Rô pega uma carona na moto de Vange. Em um primeiro momento, provavelmente por causa de uma espectatorialidade já contaminada pelas afabilidades do curta, preocupei-me com a protagonista pilotando o veículo sem capacete, cabelos ao vento, ao som de “Noite Preta” (1991). Mas, depois, fez sentido. Até então quase sempre solitária, Vange cede o seu provável único capacete para Rô, que retribui o zelo com um abraço que parece infinito. Pequenas pílulas de delicadeza. A cena de sexo também segue esta tônica da brandura. Subverte-se o olhar cis-heteromasculino que costuma orientar as audiovisualidades do erótico: nada de fragmentar e reificar as zonas da carne. Todos os corpos estão ali, inteiros, produzindo e recebendo prazer, sem hierarquias.
Só não há afagos quando, diante de um telejornal que anuncia um estupro cometido contra uma mulher lésbica, Alice mastiga com fúria um boneco de soldado e sua arma fálica que, fantasticamente, estão presos ao palito do seu picolé. Devora-se e dejeta-se o patriarcado. Mas o curta não é sobre violências, embora elas estejam sempre à espreita. Uma Paciência Selvagem está aí, resiliente, para trazer felicidade. Deve ser por isso que, durante toda a exibição, não consegui parar de sorrir.
Se eu tô por aqui é por mistério (2024)
Em um Rio de Janeiro futurista, Dahlia busca fundar o Clã mais poderoso que já existiu para derrotar a Ordem da Verdade, que persegue e elimina pessoas trans. Se eu tô por aqui é por mistério consegue tecer denúncias sem reiterar violências: assassinatos que encontram um lastro tão firme em nosso país são representados sob o verniz da paródia. Aludindo à tradição do cinema de horror, Clari Ribeiro amplifica a artificialidade da morte e, com isso, ergue uma fronteira ética entre espectadores e a brutalidade vista na tela. O fantasioso é ético, e ao mesmo tempo que nos compadecemos com as mocinhas indefesas que tentam, sem nenhuma habilidade, escapar do seu algoz, revisitamos criticamente o nosso próprio repertório fílmico, repleto de ideias absurdas da fragilidade feminina alimentadas por imagens como essas que, nos seus usos dominantes, se levam a sério.
Dahlia precisa localizar a líder suprema, desaparecida, para descobrir o seu próprio caminho. Essa costura narrativa, como já sugerido, não é tão bem urdida, mas o filme parece querer engendrar contra-discursos por outras vias. A performance está a serviço da performatividade – em outras palavras, tentando aterrar a teoria de Judith Butler, a qualidade expressiva e artística de um corpo em cena (principalmente da magnética protagonista Aretha Sadick) é de onde brotam as asserções sobre formas outras de viver e transgredir os gêneros. A iluminação neon e o apurado trabalho de fotografia dilatam e potencializam essas experiências de desvio biopolítico.
O curta me fez pensar sobre as recentes reivindicações em torno da palavra “bruxa”. A literatura sobre o tema privilegia suas associações com a história do extermínio sistemático de mulheres cisgêneras e europeias, queimadas vivas a partir do século XVI por afrontarem expectativas em torno de seu papel procriativo, necessário ao acúmulo do capital. Talvez o deslocamento visual ensaiado por Clari Ribeiro e suas bruxas e bruxos queer do Sul Global sugiram não apenas a necessidade de revisitar o passado e revirar as cinzas das fogueiras para entendermos dimensões eclipsadas de um genocídio sustentado na repulsa e no controle de uma ideia específica da feminilidade, mas a validade dessa alcunha monstruosa e provocativa para nossas lutas do presente: quem deve integrar as trincheiras dessa batalha? Uma pequena extrapolação, que me parece justa.
Zezé Motta e Helena Ignez integram um poderoso elenco saudando as novas gerações de artistes como Lorre Mota e Bruna Linzmeyer – no papel de uma cobra –, um (comedido) gracejo cinéfilo a duas grandes musas da nossa cultura audiovisual.
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