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Tiradentes: Abraçar Medusa e Medeia e gozar juntas numa sala de cinema

  • Foto do escritor: Juliana Gusman
    Juliana Gusman
  • 31 de jan.
  • 7 min de leitura

Atualizado: 2 de fev.




Por Juliana Gusman | Críticas


Com a publicação de O prazer visual e o cinema narrativo, artigo de Laura Mulvey convencionalmente assinalado como o ponto de partida de uma crítica feminista em 1973, as formas de objetificação das mulheres no cinema começaram a ser tensionadas e subvertidas, por realizadoras, em tela. A hiperssexualização dos corpos femininos, cênicamente compostos e ordenados para apetecer um público presumivelmente cismasculino e normativo, configurou-se como uma das principais estratégias de domesticação discursiva e converteu-se, portanto, em um ponto sensível em análises politicamente orientadas. Sobretudo numa produção mais recente, uma resposta a essa tendência presente em cinematografias diversas foi a recusa total às imagens do desejo. Dessexualizar para humanizar: este foi um caminho possível. E igualmente traiçoeiro. 


A historiadora italiana Silvia Federici alerta que, no capitalismo colonial e heteropatriarcal, o corpo foi o primeiro território de expropriação coletiva, transfigurado em uma máquina - objetificada, por outras vias - de produção e reprodução. Recuperá-lo, ela nos diz, é o ponto zero da revolução. O corpo deve ser alvo de uma mudança radical incendiada pelo ócio, pela dança, pelo eros. O erótico, como assopra Audre Lorde, é uma força vital, por meio da qual podemos nos transformar, umas às outras, abalando pilares e certezas eretos de um mundo forjado por homens. 


Na 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes, realizada em 2024, a libido masculina entumeceu-se com abundância e ousadia por meio de um conjunto de filmes, sobretudo curtas-metragens, obstinados a distender fronteiras do gosto e do gozo. Se toda expansão política-sexual é bem-vinda, tal excesso revelou o silêncio constrangido da nossa própria fome (em debate, o programador Roger Koza chegou a dizer que este é o festival com mais relances de pênis que já viu na vida).  


Com excitação, percebo que em 2025 as fantasias femininas e de pessoas com bucetas voltaram a conjurar visualidades destemidas.       


A começar por Safo: a doce-amarga (Larissa Muniz, MG), uma pérola da Mostra Panorama, uma janela não competitiva e, muitas vezes, mais arrojada, do evento. A própria diretora o definiu como amador. Sim, é um curta de quem ama mulheres e filmes. Muniz maneja com cuidado e irreverência recortes de ficções lésbico-feministas dos anos 1970 e 1980, colando ou montando, numa narrativa rimada e positivamente afrouxada, pequenos pedaços de ternura, tesão e flerte. Sem anunciar, de antemão, a procedência de figuras mais ou menos reconhecíveis - como a Jeanne Dielman de Chantal Akerman, a Yolanda de Sara Gómez ou as freiras sapatonas de Su Friedrich - percebemos, pela textura das imagens, um outro tempo de cinema. Na reconstrução de uma história dos gestos, adensada pela leitura fracionária de Anne Carson e Monique Wittig, Muniz revela os vestígios de um atrevimento amplo e irrestrito que nos cabe retomar. Olhar, tocar, beijar, roçar e foder: abraçar Medusa sem medo do congelamento. A reciprocidade carnal é libertária. Uma personagem diz: “I love to have sex in front of the camera”.


Na Mostra Foco, Entre Corpos, de Mayra Costa (AL), também investe numa montagem-colagem para dilatar afetos. É um filme ligeiro, estranho, em que o banal e o inusitado partilham uma mesma temperatura dramática - continuidade acentuada pelo uso nivelador do branco e preto. A costureira Vânia (Ticiane Simões) alinhava bainhas e dá nós em cus. Explora vontades, mais ou menos acatadas pelos seus clientes, com o desprendimento fresco da curiosidade infantil. A protagonista, inclusive, nutre confidências com uma criança, o que ressalta (corajosamente) a dimensão lúdica deste jogo sexual. E Vânia registra tudo: na sua própria montagem-colagem, constrói um porno-mural de fotografias com a viscosidade dos seus fluídos genitais: ela masturba e cola para extravasar pulsões. No campo e antecampo, personagem e diretora reordenam imaginários da feminilidade contra a caretice. 


O que mais enfraquece a proposição estética e temática do trabalho de Costa é seu paratexto, a sinopse. Caracteriza-se a Vânia de Ticiane Simões como “uma mulher marcada por traumas”, aventando-os como origem da sua busca resoluta pelo prazer. Esses traumas, felizmente, não se traduzem para a fatura do filme, que na verdade projeta uma mulher muito capaz de sustentar e rebater investidas alheias. 


A colagem crítica e imaginativa seguiu como disparador de obras feministas. Tamagochi_Balé, de Ana Costa e Silva (RJ), é uma distopia performática e ciberpunk que lamenta a desmaterialização das relações humanas. Evoca outro curta exibido no ano passado em Tiradentes, Onde Está Mymme Mastroiagnne? (2023), de biarritzzz, que, como Tamagochi_Balé, se inscreve na cultura do machinima (junção das palavras “machine”, “animation” e “cinema”, em inglês). O metaverso construído no trabalho de biarritzzz ambicionava erigir um espaço, complementar ao mundo real, capaz de acomodar a amplitude das vivências queer. Em Tamagochi_Balé, ao contrário, há pessimismo e terror com as possibilidades inventivas das tecnologias digitais, indissociáveis de um neoliberalismo que mina, justamente, a fisicalidade transformativa das satisfações comuns. O futuro do sexo fake é inóspito. Feito inteiramente com imagens de arquivo (bem diferentes daquelas de Safo: a doce-amarga) e com captações do aplicativo Zoom, descorporifica-se até o sujeito atrás da câmera. Às vezes, o tom mais explicativo da narração contrasta com a qualidade alucinada do universo virtual. Mas o filme é contundente em seus receios. E não é derrotista: termina ao som de Cher, cujo refrão-pergunta adquire outros sentidos: "do you belive in life after love?”. Ana Costa, com sua atriz dançante, parece dizer que não. 


Reconhecer o desejo do desejo pelo cinema implica, de fato, acatar nossos medos e seus riscos. Luna Alkalay, realizadora septuagenária que fez parte de uma geração que desbravou caminhos, retoma a direção, após um longo hiato, para falar do amor maldito da mulher velha. Em uma obra sobriamente caótica, conscientemente delirante, Alkalay reencena a angústia de “apaixonar-se por inteiro por um homem pela metade”, 35 anos mais novo. Faz no cinema o que Annie Ernaux, em Paixão Simples (2023), fez na literatura. Ambas audazes no enfrentamento do tema e no manejo de suas linguagens autoficcionais.


Como nos outros filmes, Trópico de Leão (SP) assume - à sua maneira, evidentemente - uma colagem dissonante de diferentes registros: de narrações e encenações sobrepostas, de performances teatrais e seus ensaios avessos - o que implicou um esforço minucioso da montadora Rama de Oliveira, que consegue alinhavar o caos sem esvaziar sua energia provocativa. Para domar, num sentido psicanalítico, as sequelas de uma relação abusiva, Alkalay invoca três figuras fundadoras dos mitos e contra-mitos da feminilidade, fragmentos do seu espelho narcísico e irascível que a acolhem e multiplicam: Eco (Chris Maksud), que recita tudo o que o homem lhe diz; Penélope (Fabia Renata), que o espera, obedientemente; e Medeia, uma Helena Ignez em chamas que quer vingança. 


A metáfora, como ferramenta, acompanha Alkalay desde Cristais de Sangue (1974), seu primeiro longa, recentemente restaurado depois de décadas de sua última exibição. Nele, a metáfora é uma artimanha contra a censura para falar das violências da ditadura militar (1964-1985). Em Trópico de Leão, a metáfora também parece servir ao não-dito, ao que é silenciado por outras estruturas de coerção e poder: não um regime autoritário, mas um patriarcado mutável e persistente, que segue combatendo a impertinência das nossas paixões. 


Para além das metáforas, Trópico de Leão  herda de Cristais de Sangue seus arquivos e sua carne, evidenciando que as preocupações da diretora persistem cinquenta anos depois. A ditadura, o massacre dos povos Yanomami, a pandemia ou a dureza e crueza dos campos de concentração que aprisionaram sua mãe no passado são questões que atravessam e agravam o seu martírio. Este cinema metafórico é seu modo de “transformar tragédias em dramas altamente suportáveis”, ainda que, quando fala da morte, crave que “toda metáfora é literal”. O eco que fica, após a sessão, tem voz de mulher. 


A única obra dirigida por uma realizadora na Mostra Aurora, competitiva dedicada às primeiras direções de longa-metragem, confirma a aposta de um certo cinema feminista contemporâneo na ambiguidade (e potência) do eros. Cartografia das Ondas (RJ), de Heloísa Machado, adota o mis en abyme como alicerce de sua disposição formal: há um filme dentro do filme dentro do filme. Numa primeira camada, de tonalidades documentais-ensaísticas, os dois roteiristas - Machado e Gledson Mercês - discorrem sobre suas lidas respectivas com a vida e com o trabalho cinematográfico em processo de feitura. Renovam uma certa tradição do documentário em primeira pessoa, com duas (e mais) instâncias narradoras que se encontram e desencontram na tentativa de finalizar um projeto começado há dez anos. Tocam nas dificuldades do fazer cinema, sem perder de vista dimensões de classe e raça que existem no ofício. 


Este projeto inacabado, ficcional, envolve a história de uma prostituta, Teresa (Indira Nascimento), que é levada por Caronte a uma ilha-paraíso das putas mortas. A ilha, porém, não é tão idílica, onírica. O arranjo da fotografia e os figurinos remetem às elaborações pictóricas de uma arte renascentista produzida, majoritariamente, por homens -  em verdade, é um homem, o alter ego de Mercês, que engendra estes quadros diegeticamente. As mulheres, ainda, não parecem nutrir cumplicidades firmes. Mesmo a cena em que dançam juntas, como bruxas, parece ser mais tributária às visualidades hegemônicas dos sabás do que à sua reinvenção. Por fim, a obra sugere a incompatibilidade do prostituir e do maternar, já que as mulheres da ilha são obrigadas a abandonar seus filhos, obstáculos do pleno prazer. A dicotomia esposa/mãe-puta é um dos pólos ontológicos que constituem a feminilidade estimada. A puta, oposição abjeta, é a sua negação. Na defesa da autonomia dos corpos, Cartografia das Ondas pode reiterar essas cisões aparentemente irreconciliáveis. 


Tais desconfortos, contudo, não são necessariamente danosos. Machado assume, altivamente, o perigo da incompreensão. O filme dentro do filme carrega as idiossincrasias do roteirista dentro do personagem. Contradições fazem sentido dentro de uma obra errante e tateante. 


Há de se destacar, e aí sim celebrar, uma outra referência de Cartografia das ondas à história das artes visuais. A diretora, cuja carreira foi transpassada por uma gravidez - o que é incorporado ao longa - nos oferece sua própria releitura de A origem do mundo, de Courbet. Abre sua intimidade e suas pernas, lembrando o público de Tiradentes que nem só de paus pulsantes se faz um cinema radical. 



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