Tiradentes: A Trajetória de Bruna Linzmeyer em Alfazema e Medusa
- Ludmilla Gualberto
- 12 de fev.
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Por Ludmilla Gualberto | Críticas
A atriz catarinense Bruna Linzmeyer, de 32 anos, foi a homenageada da 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Com uma carreira versátil, Bruna se destacou, para o grande público, em papéis marcantes de novelas da TV aberta, como Insensato Coração (2011), Amor à Vida (2013) e o remake de Pantanal (2022). Ao longo de sua trajetória, foi indicada a prêmios em eventos como o Festival Sesc Melhores Filmes e o Festival Sundance de Cinema, assim como ao Prêmio F5. Também foi laureada com o Prêmio Félix Suzy Capó de Personalidade do Ano, que celebra a representatividade LGBTQIA+ na televisão, no cinema e nas redes sociais.
Fora das telas, Bruna é uma voz ativa da comunidade, usando seu reconhecimento para dar visibilidade a pautas relevantes, especialmente sobre a representatividade lésbica. É também uma forte apoiadora do movimento feminista e uma defensora incansável da causa ambiental, promovendo iniciativas como o projeto SOS Amazônia. Com talento, engajamento e diversidade, Bruna Linzmeyer se firma como uma das grandes referências da arte e do ativismo no Brasil.
Bruna construiu uma presença marcante no cinema, atuando em produções de destaque como Rio, Eu te Amo (2014), ao lado de Rodrigo Santoro, A Frente Fria que a Chuva Traz (2016), de Neville d’Almeida, e O Filme da Minha Vida (2017), dirigido por Selton Mello. Apesar de sua consolidada posição em grandes produções, Bruna mantém um forte compromisso com o cinema independente, participando de curtas-metragens como Alfazema (2019), de Sabrina Fidalgo; Uma Paciência Selvagem Me Trouxe Até Aqui (2021), de Éri Sarmet — vencedor da Mostra Foco na 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes; e de longas como Medusa (2022), de Anita Rocha da Silveira.
A curadoria da Mostra de Tiradentes tentou contemplar essas várias faces cinematográficas de Bruna Linzmeyer. Destaco, aqui, duas produções, dirigidas por mulheres, que integraram a programação: Alfazema (2019) e Medusa (2022).
Alfazema foi dirigido por Sabrina Fidalgo, artista multifacetada — colunista, autora e produtora brasileira — com obras reconhecidas e exibidas internacionalmente O filme foi indicada ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro na categoria de Melhor Curta-Metragem e conquistou os troféus Candango de Melhor Direção e Melhor Trilha Sonora no 52º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
O curta inicia de maneira surpreendente, dando destaque, já nos primeiros segundos, a um pênis flácido, enquanto retrata o universo carnavalesco brasileiro. Traz-se à tona diálogos caóticos e intensos, como o próprio Carnaval, abordando de forma cômica e divertida temas relevantes como uso de drogas, DSTs, religião, representatividade e sexo seguro — tudo isso condensado em 24 minutos.
Os personagens são bem construídos, a fotografia é bela e a trilha sonora é envolvente. Bruna Linzmeyer se destaca ao interpretar “o Diabo”, uma figura sensual e de aparência excêntrica, distante de uma proposta estética das representações estadunidenses. Ela atormenta Flaviana (Shirley Cruz), uma amante fervorosa do Carnaval, após uma noitada de sexo casual e uso de substâncias ao lado de Lucas (Victor Albuquerque).
O Diabo encarna o desejo humano reprimido, em constante conflito com o “Anjo da Guarda” (interpretado por Bianca Joy Porte), que representa a culpa cristã diante dos prazeres e pecados do Carnaval. Deus é interpretado por Elisa Lucinda, uma mulher negra que afronta uma normatividade patriarcal e racista e que nos convida a uma reflexão sobre as narrativas embranquecedoras da religião.
O que surpreende na obra é o uso da metalinguagem, revelando que, ao final, tudo não passa de uma filmagem dentro do próprio filme. Esse recurso rompe com a quarta parede e confere à narrativa uma dimensão de autoconsciência, transformando o próprio ato de dirigir em uma brincadeira com a arte cinematográfica. Esse gesto não apenas torna o desfecho ainda mais criativo, mas também satiriza, de forma sutil, a rigidez do cinema tradicional. Além disso, o filme critica a posição historicamente marginalizada da mulher negra no audiovisual, que, em vez de ocupar cargos de direção e protagonismo, muitas vezes é relegada a papéis de submissão.
Já o longa-metragem Medusa (2021), dirigido por Anita Rocha da Silveira e exibido em diversos festivais internacionais, recorre ao gênero do horror para dialogar com questões sociais e religiosas, inspirando-se em histórias reais. O filme teve estreia internacional na Quinzena dos Realizadores no Festival de Cannes e foi premiado como Melhor Filme, Melhor Direção e Melhor Atriz Coadjuvante no Festival do Rio em 2021.
A obra se inicia com uma cena hipnotizante: sob luzes neon, Bruna Linzmeyer entrega-se a uma dança frenética e inusitada — uma performance que pode ser interpretada como uma metáfora para o orgasmo feminino. A abertura já antecipa o tom subversivo do filme.
A trama acompanha um grupo de mulheres que se dedica a "punir as pecadoras", reforçando o conceito de pecado sob a ótica religiosa. Logo nos primeiros minutos, um close em uma cobra estampada na parede evidencia o simbolismo cristão da tentação e do perigo.
A vida cristã adquire um caráter quase obsessivo para o grupo gospel “Michelle e as Preciosas”. As integrantes demonstram uma preocupação excessiva com a aparência: o cabelo deve estar perfeitamente alinhado e a pele, sem marcas, de acordo com padrões específicos. Suas práticas e as regras se assemelham mais a uma seita. Elas se orgulham de usar a fé e o nome de Deus para justificar atos de violência, como o crime que inspirou a criação grupo: o ataque com fogo ao rosto de Melissa (interpretada por Bruna Linzmeyer), uma jovem considerada "indigna" por não se enquadrar nos padrões morais impostos em um Brasil distópico. Ao colocarem suas máscaras brancas, as integrantes do grupo comentem atos brutais sob a certeza de estarem fazendo justiça.
Em meio a esse universo extremista, há momentos que beiram o cômico e o surreal, como quando Michelle (Lara Tremouroux), vocalista da banda da igreja, tenta "catequizar" hábitos modernos banais — até mesmo uma simples selfie no Instagram precisa seguir as diretrizes da religião.
Outra personagem intrigante é, evidentemente, a protagonista Mariana (Mariana Oliveira), cuja obsessão pelo crime cometido contra Melissa beira o doentio. Para ela, a violência sofrida pela jovem se transforma em um troféu, algo digno de exibição. Seu maior desejo é reencontrar a vítima desaparecida, alimentando um prazer sádico ao imaginar seu rosto desfigurado.
No entanto, a fé cristã que Mariana aparenta seguir com convicção começa a se abalar quando uma cicatriz significativa marca seu próprio rosto. Esse evento desencadeia uma transformação profunda, levando-a a questionar os padrões de comportamento impostos às mulheres. Conforme essa mudança se intensifica, seu novo trabalho em um hospital psiquiátrico a aproxima dos pacientes, despertando nela uma empatia inesperada. Ao finalmente encontrar Melissa — seja na realidade ou em sua própria imaginação —, Mariana experimenta um impacto transformador. Sua obsessão se dissolve, dando lugar a um olhar mais compassivo para o sofrimento alheio.
Paralelamente, seu relacionamento com Lucas (Felipe Frazão), um enfermeiro do hospital, introduz um elemento de tensão sexual que desestabiliza suas crenças. Criada dentro de rígidos preceitos religiosos, Mari passa a enxergar esse desejo como uma possível possessão espiritual. Curiosamente, à medida que se afasta da igreja, ela descobre em si uma nova capacidade de compaixão—um contraste que adiciona camadas à sua jornada na trama.
Para além das complexas personagens femininas, os Vigilantes de Sião desempenham um papel fundamental na narrativa. O grupo, formado por jovens homens da comunidade religiosa, pratica lutas corporais e mantém um rígido controle sobre suas relações — Michelle e as Preciosas só se envolvem romanticamente com eles, reforçando a estrutura patriarcal opressiva da seita na qual o lugar da mulher é apenas o da submissão.
Diversos outros elementos presentes no filme merecem destaque, como o uso das luzes de neon, que surgem em várias cenas, muitas das quais associadas a comportamentos considerados pecaminosos. As cenas no hospital psiquiátrico, onde supostamente Melissa está internada após o acidente, remetem ao Jardim do Éden, com o fruto do pecado à disposição. Ao longo da trama, também fica claro que as protagonistas escondem segredos que contradizem seus próprios princípios.
O filme se configura como uma espécie de protesto, desmascarando a hipocrisia do conservadorismo por meio de uma estética marcante. Ao criticar o fundamentalismo religioso, Medusa provoca e perturba, conduzindo espectadoras e espectadores por uma jornada de questionamentos sobre as hierarquias nas relações, o conceito de amor, os limites da fé e como a violência e a repressão podem se entrelaçar de maneiras profundamente inquietantes.
Alfazema e Medusa são produções cinematográficas de autoria feminina, repletas de detalhes que exigem um olhar atento, crítico e aberto a diversas interpretações. No contexto atual, marcado pelo fortalecimento do conservadorismo, a representatividade nas telas e as discussões que promovem análises daquilo que frequentemente encontra-se mascarado no cotidiano tornam-se fundamentais.
Ambas as obras discorrem sobre a resistência feminina diante da opressão sistêmica, ainda que apresentem diferenças estéticas e narrativas. O que as une é a maneira como expõem histórias sob a ótica da subjetividade feminina, evidenciando os diversos obstáculos impostos por uma estrutura machista que se perpetua ao longo dos séculos.
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