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Rosae Rosa, Solo e o milagre da história

  • Foto do escritor: Juliana Gusman
    Juliana Gusman
  • 21 de jan.
  • 4 min de leitura
Homem segurando rosa, Still frame do filme "Rosae Rosa"

Por Juliana Gusman | Críticas


A entrevista (1966), de Helena Solberg, é frequentemente celebrado pelo seu pioneirismo. Marco inicial de um documentário feminista que insurge com rebeldia e sem alardes nos anos 1960, este curta-metragem trouxe à baila temas até então escamoteados pelo cinema moderno nacional. Nele, a diretora reúne uma série de depoimentos de jovens de 19 a 27 anos que ponderam sobre suas experiências cotidianas, atravessadas por normas de gênero – com notáveis dissonâncias. Nesse sentido, a obra apresenta uma insolucionável ambiguidade ao friccionar falas que comprovam tanto a alienação das mulheres da classe média brasileira, quanto suas justificadas insatisfações com os papéis que lhes eram atribuídos. Entre a crítica e a complacência, A entrevista não crava condenações à feminilidade burguesa. O seu legatário e igualmente pioneiro Rosae Rosa (1968), porém, não lhes garante a mesma cortesia. 


Assim como Helena Solberg, Rosa Maria Antuña, uma das primeiras mulheres a dirigir um filme em Minas Gerais de que se tem notícias, conseguiu acessar uma certa cena cultural por causa de suas condições econômicas. Numa trajetória pouco comum para alguém nascida no final da década de 1930, ingressou na Escola Superior de Cinema da Universidade Católica após formar-se em Biblioteconomia. À primeira vista, poderíamos supor que sua investida inaugural na direção cinematográfica – batizada com o seu próprio nome, grafado flexionadamente em latim e português – apresentaria uma narrativa subjetivada, aliançada às questões de um feminino branco e abastado que começava a se revoltar contra domesticidades e docilidades impostas. 


Essa face da mulheridade, de fato, está em cena. A personagem de Zulma Drumond cultiva flores no quintal de uma casa vistosa, de muro baixo. Acolhe sua roseira com uma devoção ao mesmo tempo banal e bucólica, distraída com o lirismo – acentuado pela trilha musical sobreposta, o único elemento sonoro – de sua vida ordinária. É interrompida, contudo, pelo “mendigo” interpretado por Sebastião Schmidt, cujo périplo é retratado pela diretora em planos alternados, dialéticos, desde o início do curta. Sua busca obstinada por comida contrasta com a placidez inabalável da garota que, diante de um pedido de ajuda, diz não ter nada a oferecer. O mendigo vira-se para ir embora, ao que a mulher hesita. Chama-o de volta. Arranca uma de suas rosas e lhe concede esta pequena e consoladora gentileza.


Nesse momento, a música para. A câmera se aproxima do mendigo, estático, com a flor em mãos. Se a delicadeza presente até nas imagens mais duras sugere que a síntese conclusiva do filme seria um ingênuo aceno à poesia de uma conciliação, é nela que se sustenta o giro subversivo de Antuña: olhando diretamente para a câmera – e, consequentemente, para espectadoras e espectadores esclarecidos e sensibilizáveis por aparentes benevolências – o mendigo come a rosa. Em sua obra, a diretora devora as metáforas de si mesma para denunciar, com coragem e singeleza, as urgências de um povo que tem fome e pouco tempo a perder. 


Não que Antuña abandone por completo as questões que lhe concernem mais diretamente. Seu filme seguinte, Solo (1969), é um pequeno ensaio visual sobre o desejo – um tema maior para os feminismos que reconhecem que o corpo que vive o pleno prazer tem, como diria a historiadora Silvia Federici, uma política imanente: “a capacidade de transformar a si mesmo, aos outros, e de mudar o mundo”. Nele – que foi exibido uma única vez no Festival JB-Mesbla no ano de sua produção – uma beata – interpretada por Irene, prostituta de São João Del Rey – faz suas rezas antes de dormir. Na sua cabeceira há, além de remédios, a figura de um Santo Antônio – que aparece, como em Rosae Rosa, em planos dialéticos intervalados com aqueles que mostram a tensão e o tesão crescente da protagonista. 


A beata começa a se contorcer na cama, ritmada pela música extradiegética de Abgar Tirado – pianista e compositor mineiro ligado à Igreja Católica, em mais uma camada de elaboração e delimitação de um microespaço profundamente religioso. À medida que a mulher vai ampliando e alargando o alcance do seu toque, a pequena estatueta do santo cresce como uma sombra censora e vigilante. 


Contudo, mais uma vez apostando na imprevisibilidade forjada em um inteligente exercício de montagem, Antuña radicaliza sua força sintética: cedendo ao impulso da liberdade sexual, a beata, incontida e atirada ao chão, alcança o santo. Transubstanciado em objeto fálico, ela o usa como extensão dos dedos. A câmera, então, se fecha em seu rosto e em seu gozo, que flui, contra as nossas expectativas, sem culpa.


O peso dessa transgressão, porém, recaiu sobre a diretora após a circulação do curta. Reduzido a três palavras – iconoclasta, erótico e cômico – pelos comentaristas masculinos à época, Solo se tornou, para Antuña, um filme-assombração. Por essa e outras contingências do destino, ela se afastou da realização cinematográfica, recusando, até hoje, a alcunha de artista.  


Contra a tentação imaginativa dos pretéritos imperfeitos, que poderia nos levar a projetar a grandeza de uma filmografia inexistente, devolvo à Rosa, quase cinquenta anos depois, outras três palavras que louvam a potência de sua filmografia concreta e possível, em uma tímida tentativa de esconjurar fantasmas. Solo, o ponto final ou a reticências dessa anticineasta, é vanguardista, pelo seu frescor, rigor e amor às imagens; ousado, por assuntar o assombro dos homens; e erótico, sim, fiquemos com o termo. Mas nos lembremos, com Audre Lorde, de seu sentido expandido, como fonte de poder e resistência. Em seus cinco minutos e meio de contribuição ao cinema, Rosa Maria Antuña conseguiu fazer o impensável: o milagre da história. 


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 LORDE. Audre. Usos do erótico: o erótico como poder. In: Irmã Outsider. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. Imagem: Still Frame do filme "Rosae Rosa".

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