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Há bem mais entre um homem e uma mulher: dos regimes políticos aos regimes estéticos em "De cierta Manera"

  • Roberta Veiga
  • 2 de abr.
  • 7 min de leitura

Por Roberta Veiga | Ensaios


Além de ser o primeiro filme cubano feito por uma mulher negra, De cierta manera (1974-1977) revela-se hoje incontornável se quisermos substanciar uma abordagem analítica feminista do cinema. O filme de Sara Gomez materializa e ao mesmo tempo nos devolve uma forma pensante do que temos chamado de feminismo interseccional. A despeito das críticas ao conceito, conforme estabelecido por Kimberlé Crenshaw, importa o que, já bem antes dessa autora, se coloca em jogo quando o feminismo parte da intersecção, ou melhor, da confluência entre diferentes fatores sociais, étnicos, culturais, econômicos, que talham as subjetividades femininas ao compor o gênero como arranjos identitários. 


É tanto essa confluência de diferentes fatores quanto o entendimento desses arranjos que De cierta manera oferece cinematograficamente ao criar uma narrativa ficcional que – sem carregar na intriga ou no artifício - não pretende ir mais além do que se manter contígua ao cotidiano já ele mesmo convulsionado pelas transformações políticas, sociais e culturais, que a transição socialista cubana vinha acarretando. Sara Gomez, ou Sarita (como era conhecida), não força um roteiro que simule o feminismo em sua interseccionalidade. A cineasta capta com absurda sensibilidade um estado entre o passado (sob um governo ditatorial) e o presente de uma Cuba pós-revolução, no qual as relações afetivas diárias reverberam, e ao mesmo tempo rebatem, as tensões e oscilações de se estar em um processo de implementação de um novo regime político, voltado para programas assistencialistas sociais e econômicos, principalmente, para a alfabetização e a saúde.


Se para apanhar esse estado entre, de transição, ou limiar, que traduz não só o espírito, mas a experiência de Cuba no início dos setenta, Sarita renuncia a qualquer excesso de retórica diegética e conserva a vertente realista do cinema cubano, é porque lança mão de uma estratégia que perfura e depura a ficção criada para o filme. Apostando em todas as frentes, no entre como característica de um estado de convulsão social – entre dois regimes políticos - a cineasta opta por trabalhar esteticamente também na transição constante da dialética entre dois regimes cinematográficos: a ficção e o documentário. 



Nada mais pedagógico para um novo programa político anticapitalista que os documentários explicativos, didáticos, sobre as mudanças ocorridas e aquelas ainda necessárias. Até porque a mentalidade de um povo não muda da noite para o dia: não se dorme nos valores conservadores e se acorda progressista. Há todo um status quo que conforma visões, crenças e relações comportamentais, a saber a ideologia de um regime ditatorial. A propaganda educativa, nesse sentido, é fundamental para construir a transformação que os intelectuais revolucionários almejavam. De cierta manera faz uso de arquivos, imagens e locuções documentais que registram informações e prospecções do novo projeto social pós-revolução. Essa faixa se intercala com a narrativa ficcional ressignificando o que vemos e os rumos da história a todo momento. 


É principalmente desse embate, ou mesmo do embaralhamento, entre a faixa ficcional (fabulatória) e documental (pedagógica) que se dá, como já mencionado, o mútuo abastecimento entre um universo, afetivo, familiar (micro) e as estruturas socioeconômicas (macro), de forma que as relações mais cotidianas são lidas por um viés político. O pessoal é político, diriam as feministas dos anos sessenta. Assim, é improvável que as diferenças pungentes numa transição de regime não façam decantar - dos diálogos e situações diegéticas entre os personagens, enfim da mise-en-scène ficcional - o embate entre gêneros como um arranjo tenso entre as nuances econômicas e suas definições (de classe, trabalho, instrução, moradia, valores), bem como a inscrição histórica das raças e culturas. 


Isso acontece porque há um escalonamento do estado entre que conforma o dispositivo do filme em camadas de modo que o aparato material que estrutura as forças econômicas e sociais ricocheteia não só nas relações culturais, no convívio entre diferentes crenças e religiões, mas nas relações de gênero: na intimidade entre uma mulher e um homem.



Yolanda é uma mulher autônoma, progressista e estudada, que trabalha como professora de crianças em uma escola pública comprometida com o programa social de alfabetização em Havana. Mario é um homem negro de uma família humilde devotada às crenças afro-cubanas, que trabalha numa fábrica e cultiva o hábito de jogar e beber com uma turma de amigos homens, dos quais alguns os acompanham desde a infância vivida entre as dificuldades de um povo marginalizado. Eles se apaixonam e, não por acaso, formam um casal que por si só representa o par dialético que o filme, como esse dispositivo de transição, elabora: a tensão entre os ideais progressistas da revolução cubana (a mulher-Yolanda) e os hábitos arraigados em um povo sem acesso a recursos e oportunidades (o homem-Mario). 


As diferenças entre Mario e Yolanda acarretam diversos conflitos que as cenas documentais explicitam, ora confirmando a posição de um, ora contradizendo a de outro, ora apenas fazendo os personagens deslizarem para dentro dos registros dos espaços da cidade em reconstrução, e das imagens dos povos no trabalho ou nas ruas. 



Na primeira cena de interação entre o casal, quando Mario conta sua história de vida para Yolanda, e diz que morava na favela, em casas feitas de latas e papelão, já vimos e veremos, cenas de arquivos e de outros filmes que encarnam a miséria de Cuba. Tais imagens reverberam ampliando essa precariedade da vida do personagem para todo um povo, e afirmando, através da locução em off, que a população mais prejudicada e carente é a que permanece mais presa aos valores tradicionais, portanto mais resistente às mudanças do novo regime. Nesse diálogo com o namorado, Yolanda também fala de si e expõem sua adesão aos valores revolucionários e seu engajamento na causa educacional, de forma que, naquele momento, parece representar a saída de um impasse não só de gênero, mas cultural e político. 



Contudo, Sarita sabe que nesse par dialético que o casal representa a mulher ainda não indica a superação da antítese. Em uma das sequências documentais logo após os créditos do filme, Yolanda aparece na escola como se fosse de fato professora ali e, de frente para câmera, vacila ao responder a uma entrevista: “No me siento muy bien, cuando llegué aquí me di cuenta que es un mundo muy extraño, uno que pensé que ya no existía”.



Tal desconforto da profissional engajada na educação, também se faz sentir no modo como ela conduz as reuniões com as mães de seus alunos. Em um desses encontros, Yolanda é categórica ao requerer a Mercedes, mãe de Luiz, maior zelo no acompanhamento dos estudos do filho, ao que ela, uma mulher negra com onze filhos e um marido ausente, tenta se defender explicando o quanto seu tempo está empregado no trabalho pelo sustento da família. Nesse momento, o que resiste dos valores ou comportamentos arraigados é nomeado – na dupla, tripla jornada da mulher - como uma condição feminina não desfeita, a mesma que Yolanda vai caracterizar discursivamente como um mecanismo cíclico do qual suas alunas não poderão escapar. 


Nesse momento, o feminismo brota tanto em sua faceta de classe, uma posição comum às mães cujo trabalho não é valorizado, quanto nas posicionalidades diferentes, quando uma professora de classe média tem dificuldade em passar da teoria à experiência da alteridade feminina. Nesse momento, a ficção contesta a faixa documental que parece simplificar os entraves que assombram a potência de mudança pelo processo educacional, ao mesmo tempo em que o depoimento real de uma mãe vem arrazoar de maneira bem pragmática a crença da personagem e de toda uma intelectualidade revolucionária. Nada mais dialético que um filme que se constrói entre compreensões de mundo diferentes e oscila entre eles para manter sua fatura no debate.



Essa estratégia formal, discursiva e narrativa, de jogar com os regimes documental e ficcional, de modo a escalonar às diferenças, permite que a relação dialética entre Yolanda e Mário ecoe outros pares - o povo e os intelectuais, o marginal e o revolucionário – até ascender aos regimes políticos sem, contudo, alcançar uma superação.  


O embate entre o que cada um do par romântico carrega em seu arranjo identitário não se esgota na intimidade entre eles, intergêneros, mas se modula nas relações de confronto entre Yolanda e as mães de alunos com quem conversa, e ainda na contenda entre Mario e seu amigo Humberto. Há uma sucessão de desentendimentos entre o casal, tributária da postura patriarcalista de Mario e da formação liberal de Yolanda. Entretanto, é no conflito com a traição do amigo que sutilezas do machismo decantam. 


Ao se posicionar na assembleia dos trabalhadores da fábrica, numa sequência em que os personagens fictícios parecem compor uma cena documental (ao lado de trabalhadores reais), vemos Mario delatar o companheiro Humberto que deixou de trabalhar para estar em um encontro sexual, e mentiu ao usar o estado de saúde da mãe para justificar sua ausência. Pouco depois da delação, crivado por valores machistas e feministas, Mario se angustia por ter traído sua confraria masculina, e se autocondena por uma prática que ele mesmo nomeia como tipicamente feminina: a fofoca. Porém, ao mesmo tempo fica explícito que sua atitude foi guiada por um entendimento político fundamental (base do pensamento anticapitalista), também fruto das trocas com Yolanda: de que os princípios morais se fundam e se definem em relação ao coletivo.



Nessa pequena montagem textual e imagética das tensões que transbordam o casal Mario e Yolanda, é preciso salientar que tais embates também constituem a relação afetiva entre eles e sublinham o antagonismo entre um machismo arraigado culturalmente e um feminismo ainda em vias de se tornar consciente numa Cuba prometida.  Antes disso é nos limiares, entre um homem e uma mulher; um homem trabalhador e um homem mais machista; uma mulher branca, professora, e uma mulher negra, pobre; que a complexidade do feminismo vai se tecendo na obra de Sarita, das estratégias formais aos atos de fala. Não é preciso nenhum discurso panfletário, mas entender que as opressões se fazem nesses meandros entre o macro e o micro, entre mudanças estruturais e hábitos cotidianos, entre o político e o pessoal, sem que um se sobreponha a outro. Dessa forma, o par - um homem e uma mulher –, que funda a diegese no que parece ser pequenas conflagrações, ganha a identificação espectatorial por meios dos afetos, pelo desejo mútuo que mantém Yolanda e Mario apostando no entre.


Ao se posicionar aí, nesse estado limiar, uma mise-en-abyme de entres conforma o dispositivo do filme de modo que se acentua as diferenças de posição social inter e intragêneros. Se fenomenologicamente é tangível às múltiplas camadas e cortes que compõem o gênero como emaranhados identitários, a incontornabilidade analítica de uma perspectiva interseccional está dada em cada cena e na fatura final do filme. Dito de outra forma, De cierta manera não impõe um olhar interseccional, apenas o libera, o desimpede, ao apanhar as relações em sua complexidade constituinte.


Referências

Mesquita, Claudia, & Veiga, Roberta (2021). O feminismo de Sarita: limiar, dialética e interseccionalidade em De Cierta Manera. Significação: Revista De Cultura Audiovisual48(55), 17-35.

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  1. Não só o argumento do entre, também nomeado como limiar, bem como a noção de dialética que lhe é corolário, que constitui a base desse texto, mas seu desenvolvimento é uma versão reduzida, mais pontual e explicativa, de longo artigo publicado, na revista Significação, em 2021, por mim e Claudia Mesquita (a quem só tenho a agradecer a parceria para pensar com Sara Gomez).




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