"A ferida que começou a abrir para nunca mais fechar": Elizabeth Teixeira, militância e maternidade no redemoinho da história
- Cláudia Mesquita
- 13 de fev.
- 27 min de leitura
Atualizado: 19 de fev.

Por Cláudia Mesquita | Ensaios
Texto originalmente publicado no livro Cabra marcado para morrer (2024), organizado por Rogério de Almeida, Christiane Pereira de Souza e Kamilla Medeiros.
Introdução
A memória das lutas sociais no Brasil, tal como inscrita nas imagens do
documentário brasileiro, esboça – com limites, mas também com potências e nuances – o protagonismo das mulheres. Partimos aqui do desejo de inventariar emergências fílmicas das mulheres como sujeitas políticas, interpelando de maneira feminista alguns documentários brasileiros dos anos 1960, 70 e 80, a partir de suas protagonistas. Gostaríamos de examinar os sentidos atribuídos à experiência feminina e os efeitos subjetivos e políticos de sua participação nas lutas por direitos e por liberdade, por melhores condições de trabalho e de vida, no período da ditadura (1964-1985) e durante o processo de redemocratização. Camponesas sem-terra, bóias frias, trabalhadoras metalúrgicas, donas de casa, estudantes, militantes – na cidade ou no campo, interessa pensar como as lutas partem de (e incidem sobre) a experiência das mulheres, levando-as a questionar opressões, desigualdades e assimetrias históricas, inclusive no espaço doméstico.
Nesse artigo, voltamo-nos para o caso paradigmático de Elizabeth Teixeira,
militante das Ligas Camponesas, mãe de 12 filhos, personagem central de Cabra marcado para morrer (Eduardo Coutinho, 1984). Viúva de João Pedro Teixeira, cuja história se buscava reconstituir no roteiro original, Elizabeth foi filmada por Coutinho em 1962, 1964, 1981 e – quase 30 anos depois do lançamento de Cabra marcado para morrer – em 2013, um ano antes da morte do diretor, quando ele esteve no Rio e na Paraíba para reencontros filmados com os personagens de Cabra¹. Esse processo-cinema, abrigo de 50 anos de história, não apenas registrou imagens de Elizabeth mas interveio de modo decisivo em sua vida. As aparições de Elizabeth Teixeira na filmografia de Coutinho, em diferentes momentos, nos oferecem entrada para a abordagem de seu protagonismo, na interseção entre o cinema e as lutas. Tarefa que exige de nós, ainda, o trabalho com todo um “fora de quadro”: imagens, documentos e os dois livros de
memórias de Elizabeth Teixeira já lançados.²
Isso porque a atenção à elaboração fílmica da personagem não deve prescindir
do exame de lacunas e silenciamentos sobre sua trajetória. A história da esquerda brasileira, pelo menos até meados dos anos 1990, foi escrita majoritariamente em torno das trajetórias de “grandes homens”, como nos diz Miriam Goldenberg (1997) em “Mulheres & militantes”. Mesmo que Cabra não subestime a complexidade da personagem Elizabeth, a especificidade de sua atuação (e das opressões por ela sofridas) não “cabe” inteiramente no filme, que acompanha também outras trajetórias (especialmente a de João Pedro). Militantes em um mundo quase exclusivamente masculino, Elizabeth e outras mulheres que – nascidas até os anos 1940 – enfrentaram o poder repressivo dos senhores de terra e, posteriormente, do estado autoritário durante a ditadura, foram vítimas de violência política de gênero e de todo tipo de discriminação – não raramente aparecendo, na história contada pela própria esquerda, como “coadjuvantes”, já que, ainda segundo Miriam, “aos homens cabiam as decisões políticas e as ações práticas (o mundo público)”, “às mulheres, o suporte familiar e caseiro (o mundo doméstico)” (1997: p.4-5). Buscar por Elizabeth é necessariamente ultrapassar as bordas do quadro fílmico, o que em nada diminui a grandeza e importância de Cabra.
A história do filme é conhecida: acompanhando a UNE Volante em 1962,
Eduardo Coutinho chega à Paraíba às vésperas de um grande comício em protesto pelo assassinato de João Pedro Teixeira, fundador e presidente da Liga Camponesa de Sapé, morto 12 dias antes, a mando de latifundiários. Nessa manifestação, ele conhece e filma Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro – é quando nasce, segundo nos conta um dos narradores em Cabra, a ideia de um filme de ficção sobre o líder camponês. Essas imagens “inaugurais” (da relação entre o diretor e Elizabeth) estão em Cabra marcado para morrer, e foram feitas pelo próprio Coutinho, “no único dia em que segurou uma câmera para filmar” (uma Bolex 16 mm silenciosa, com a qual ele registrou dois rolos de filme), como nos informa Patrícia Machado (2015)³. A relação de Coutinho com a história de João Pedro e das Ligas Camponesas é, portanto, desde o começo mediada
por Elizabeth – que acaba sendo a única protagonista real dos fatos a participar das filmagens de Cabra no Engenho Galileia, em Pernambuco, dois anos depois.
Interrompido pelo golpe militar, quando haviam sido rodados apenas 40%
do roteiro, o filme será retomado, com abordagem documental, 17 anos mais
tarde, após a Anistia, quando Elizabeth terá novamente participação fundamental. Concordamos com Consuelo Lins (2004), então, quando escreve que Elizabeth Teixeira é “efetivamente a personagem central de Cabra marcado para morrer” (pg. 49), o que Joana Conti e Sônia Maluf, reafirmam (2010): “Elizabeth Teixeira é a figura central do documentário”, “não porque apenas sua história é contada. Mas porque ela é o ponto de convergência de todas as histórias, tempos e espaços distintos que Eduardo Coutinho cruza, monta, une, sobrepõe e tece” (p.12). E, no entanto, no título, lê-se Cabra marcado para morrer, em clara referência ao protagonismo de João Pedro, tal como se pretendia no filme original⁴, e também em referência ao próprio filme interrompido, cujo fio se busca recuperar no longa que resultou. Mas vejamos o cartaz de lançamento do filme, quão significativo e emblemático (FIG. 1).

Na imagem, vemos o rosto de Elizabeth em primeiro plano, trazendo à cena
não apenas o testemunho do assassinato impune de seu companheiro, mas todo um período de sombras da história brasileira (veja-se a referência ao cruzeiro do sul nas balas que alvejaram o “cabra”), período que pode com ela, parcialmente ao menos, vir à luz – Elizabeth emergindo da clandestinidade no processo de abertura política que permitiu a retomada do próprio filme. Seu olhar parece buscar algo na memória – ela que, ainda em 1964, fez a ponte entre as lutas de Sapé (PB) e Galiléia (PE)⁵, entre a história vivida e o cinema, trazendo em seu corpo a experiência real que se buscava, de algum modo, transpor em imagens. Ou talvez seu olhar para o fora de campo mire o futuro. Lembremos que a reconexão de Elizabeth, em 1981, com o discurso e os gestos da militância pré-64 permitem, como diria Jean-Claude Bernardet (2003), suturar o corte que feriu fundo a democracia: para que a experiência das ligas não ficasse sem futuro, e o “agora” da abertura política não ficasse sem passado. Ela também motiva, no começo dos anos 1980, a costura entre o Nordeste e o Sudeste, Coutinho levando fotos e sua voz gravada ao encontro de suas filhas que migraram, no bojo da modernização conservadora e excludente, antes mesmo que Elizabeth pudesse revê-las, já em 1984, no Rio de Janeiro, quando o filme foi lançado.
E, no entanto, como Joana e Sônia notavam em 2010 (o que vale ainda hoje),
a ausência de uma análise mais densa sobre a trajetória de Elizabeth persiste – mesmo que muitos autores e autoras tenham reconhecido a sua fundamental importância. Propomos então reposicionar nosso próprio olhar sobre Cabra marcado para morrer, seguindo a trilha do que Karla Holanda (2006) sugeriu, quando escreveu que este filme apresenta “a história de uma mulher brasileira chamada Elizabeth, viúva de João Pedro, mãe de Abraão [poderíamos acrescentar: trabalhadora rural, ativista], que sofreu juntamente com sua família as consequências das ações do regime militar” (p.89). O olhar para Elizabeth nos oferece – essa é a aposta – a chave para uma espécie de retorno “diferido” à obra-prima de Eduardo Coutinho. Neste filme que é, em si, uma lição de “contra-história” (ao focalizar, firmemente, a perspectiva dos vencidos), mirar Elizabeth
é produzir, na expressão de Anna Karina Bartolomeu, Roberta Veiga e Letícia Marotta (2019), uma “dupla contra-história” (p. 110), extraindo, de uma “história da resistência”, “a resistência das mulheres”, tantas vezes invisibilizada.
Nossa ideia é abrir a história através de algumas imagens, reconstituindo e
analisando partes da trajetória de Elizabeth a partir desses rastros e de seus testemunhos. O título combina uma frase de Elizabeth Teixeira (“Foi a ferida que começou a abrir para nunca mais fechar”, referida à foto de família que João Pedro Teixeira encomendara, ciente de seu assassinato iminente), com duas experiências centrais na trajetória dela, assim como na história do feminismo brasileiro (SARTI, 1988): “militância e maternidade no redemoinho da história”. Ele condensa, assim, duas dimensões que gostaríamos de imprimir em nosso gesto: a centralidade concedida à voz de Elizabeth; e a busca por situar sua trajetória (sem subsumi-la) nos caminhos dos movimentos de mulheres no Brasil.
O retrato de um futuro irrealizado
Como se sabe, Cabra marcado para morrer é um filme feito de restos, de resíduos, de fragmentos – vestígios da existência de João Pedro Teixeira, mas também da primeira experiência de filmagem, abortada pelo golpe militar. Como escreveu precisamente Jean-Claude Bernardet (2003), um filme que encontrou, no fragmento e na repetição, “a própria forma da história derrotada” (p. 233). Mas a imagem a seguir, que também restou, não está no filme (FIG. 2).

Pensamos ser relevante analisar essa ausência, reconstituir a história do
retrato de família, sondando a partir dele os enfrentamentos pessoais de Elizabeth Teixeira para integrar essa imagem. Em trecho do livro de memórias Mulher da terra (2009), organizado por Ayala Rocha, Elizabeth assim se refere ao retrato, por muito tempo desaparecido:
Pouco tempo antes do atentado, ele [João Pedro Teixeira] chegou pedindo que trouxesse todos os nossos filhos, desde o mais novo até a mais velha. Trocou de roupa e levou umas cadeiras para fora da casa, dizendo: “Chegue, vamos tirar umas fotografias com toda a família reunida. Quero deixar essa fotografia para você e os nossos filhos, como uma lembrança minha. Eu sei que, um dia desses, o latifúndio vai mandar me matar. É uma lembrança que quero deixar para vocês.” Até essa foto foi para a fogueira, com tudo o que era nosso, no golpe em 1964, quando invadiram a nossa casa e puseram fogo em tudo. Por milagre, meus filhos escaparam. Fiquei emocionada e agradecida quando recebi de um jornalista uma cópia dessa foto. No momento em que foi tirada, uma agonia me apertou o coração. Rezei para que João Pedro fosse protegido de toda a perversidade do latifúndio. Senti uma coisa muito esquisita. Não sei se foi um aviso. Havia dois caminhos, fugir ou dar prosseguimento à luta até a morte. Eu conhecia a escolha de João Pedro. Aquele dia foi como uma despedida. Foi a ferida que começou a abrir, para nunca mais fechar. (2009, p.68)
Embora referido por Elizabeth em seu longo testemunho em Cabra marcado
para morrer,⁶ a ausência desse retrato no filme de Coutinho é reveladora. Em primeiro lugar, da violência que se intensificou sobre a família de Elizabeth, assim como sobre o movimento camponês organizado de maneira geral, depois do golpe militar (foram essas lutas e sua memória que se buscou, justamente, queimar). Por outro lado, penso que a ausência compulsória dessa imagem (já que Coutinho desconhecia sua sobrevivência e paradeiro) reforça no filme outras ausências, relacionadas a sua ênfase na trajetória de João Pedro – mesmo que seja Elizabeth a vocalizá-la em seu corajoso testemunho registrado em 1981. Quero sugerir que foram muitos os enfrentamentos de Elizabeth Teixeira na esfera doméstica para integrar esse retrato de família, para que ela pudesse
estar, por assim dizer, presente nessa imagem – antes mesmo que aquela ferida começasse a se abrir, com o assassinato de João Pedro, que lança Elizabeth definitivamente à esfera pública e ao redemoinho da história.
Seria preciso então desfazer os fios que tecem essa imagem. Em seu testemunho no filme, Elizabeth conta sobre ter se casado fugida, pois seu pai, Manuel Justino, pequeno proprietário, era contra o seu relacionamento com João Pedro, trabalhador negro e pobre. Nascida nas terras do pai em fevereiro de 1925, Elizabeth comenta, em Mulher da terra, que “já chegou trazendo descontentamento”:
Papai queria que o seu primeiro filho fosse homem - um menino. Segundo mamãe, ele ficou muito decepcionado e, com pesar, teve que guardar os foguetões. Naquele tempo, quando a parteira dizia: - Nasceu! É homem! Dali um minutinho, começava a festança: ao som das explosões. Entretanto, se fosse mulher, era o silêncio da decepção machista, e não havia nenhuma comemoração. (ROCHA, 2009, p.07)
Sua história é, assim, paradigmática do poder patriarcal e do controle sobre o
corpo e as escolhas da mulher – prisioneira da esfera doméstica. Desde a lembrança viva do sofrimento da mãe, submissa aos desmandos do pai, passando pela proibição de continuar estudando depois de completar o segundo ano primário7, mas se desviando ao romper corajosamente com esse histórico de assujeitamento e submissão: Elizabeth não silencia o próprio desejo e foge aos 16 anos para se casar com João Pedro. Se
Se guarda algo dos enfrentamentos dessa mulher – no corpo de Elizabeth
ali inscrito, junto ao marido que escolheu e aos filhos que tiveram –, essa imagem é também a última (e provavelmente única) em que a família nuclear está toda reunida, João Pedro, Elizabeth e seus 11 filhos. Face à realidade da família esfacelada que conhecemos em Cabra marcado para morrer, e que se desdobra em A família de Elizabeth Teixeira (documentário que resulta dos reencontros de Coutinho com Elizabeth, alguns de seus filhos e netos em 2013), o retrato exala um doloroso “poderia ter sido”. Como se eles tivessem sonhado, na fotografia então encomendada, um futuro irrealizável (MESQUITA, 2015).
Um detalhe me punge o olhar: a imagem de Marluce, a filha mais velha,
com Marinês, a caçula, no colo (FIG.3) – imagem de um devir mãe que só se realiza como aprendizado, já que Marluce se suicidaria poucos meses depois, deprimida pelo assassinato do pai. Já Marinês, que se separou da mãe com dois anos de idade, aparece maternando quando filmada por Coutinho em 1981 (FIG.4) – as trajetórias das filhas de Elizabeth, mesmo que tão distintas do que sucedeu à mãe, atualizam questões, opressões e resistências específicas das mulheres. A maternidade é uma delas. Como nos lembra Cynthia Sarti, em uma sociedade patriarcal, o vínculo entre mãe e filhos “torna a mulher particularmente vulnerável e suscetível à dor” (2001, p. 35). Voltaremos a essa questão.

A retomada, em Cabra marcado para morrer, do retrato mortuário de João Pedro,
em detrimento do retrato de família, então desaparecido, exprime de modo contundente a violência que se acirrou sobre o movimento camponês organizado – e o esquecimento forçado e imposto, que se seguiu ao golpe, daquelas lutas e daquele futuro (que o retrato de família parecia “sonhar”). Aberta a ferida, o assassinato de seu companheiro e a militância política lançam Elizabeth Teixeira no redemoinho da história. O que nos conduz à próxima imagem.
A família em luto, a maternidade golpeada
Na imagem abaixo, Elizabeth aparece com nove de seus filhos, poucos dias
depois do assassinato de João Pedro (FIG.5). Feitas por um fotógrafo do Jornal do Brasil em 1962, essa e outra foto realizada na mesma ocasião são retomadas em Cabra Marcado para morrer na transição entre o (re)encontro de Coutinho com Elizabeth Teixeira em 1981 (ela que estava há 17 anos refugiada no interior do Rio Grande do Norte, com apenas um de seus 10 filhos vivos), e a busca da equipe pelos outros filhos, espalhados pelo Brasil. Na montagem de Cabra, a foto é mobilizada como um dispositivo que conecta o passado da família, em um momento anterior à dispersão, mas já fraturada pelo assassinato do pai, ao presente da filmagem, começo dos anos 1980. A cada vez que Coutinho encontra um dos filhos, em 1981-82, a montagem justapõe, ampliada, a imagem deste filho na fotografia de 1962, condensando assim, em apenas um corte, a ruptura, a separação, o hiato temporal. Se as rememorações de Elizabeth e dos
camponeses de Galileia ajudam a “preencher” algo da lacuna - os 17 anos passados entre 1964 e o reencontro com Coutinho -, nesta sequência final o filme só faz constatar o hiato, já que a maioria dos filhos encontrados pelo diretor mal se lembra. Crianças no momento da separação, muitos não guardavam memória de João Pedro, de Elizabeth ou da família reunida.

Elizabeth foi lançada, dizíamos, no redemoinho da história – tendo que arcar
com a experiência dilacerante de se separar da maioria de seus filhos. Mecanismo narrativo, a retomada da foto de 1962 em Cabra marcado também figura, tal como trabalhada na montagem, o que Ana Nicolau (2019) chamou de “maternidade golpeada” ou “interrompida”, em seu estudo pioneiro sobre a presença feminina na filmografia de Coutinho.
Penso que cabe discutir essa experiência, decisiva para Elizabeth Teixeira.
Enquanto João Pedro era vivo, ela experimentou com os filhos, às vezes dolorosamente, as consequências do engajamento dele – desde as ausências frequentes do marido, até o cerco crescente da violência policial, braço armado do latifúndio. Em seus testemunhos, Elizabeth não se refere a essa afetação (da própria vida pelas escolhas do marido) de maneira ressentida. Ela localiza a própria sensibilidade social na infância, com a descoberta espantada da pobreza dos moradores da fazenda de seu pai (relacionamento inter-classes que lhe era vetado); considera a luta justa, apoia a atuação de João Pedro por melhores condições de trabalho e de vida – seja no sindicato da pedreira em Jaboatão (PE) ou na Liga de Sapé (PB), fundada por ele em 1956, refundada em 58, em função da repressão policial. Elizabeth dá suporte à luta: aos sábados, enquanto João
Pedro conversa “ao pé do ouvido” com camponeses na feira de Sapé, ela fica na sede da liga lendo as notícias para outros trabalhadores e assinando as carteiras dos novos associados (ROCHA, 2009).
Com o assassinato brutal do marido, que “sabia que iria tombar”, como ela diz,
Elizabeth decide “marchar na luta dele” (BANDEIRA, MIELE, SILVEIRA, 2012)8:
assume a liderança da Liga de Sapé “em prejuízo de minha vida”, e “com risco de
perda” da própria vida, como ela afirma no filme de Coutinho. Ela passa a se dividir entre o trabalho na Liga e o cuidado com a prole e a casa. A impossibilidade de estar mais tempo com os filhos é referida inúmeras vezes em seus relatos, e mesmo muitos anos depois, o trauma da maternidade definitivamente interrompida (pela fuga e o exílio forçados, após o golpe militar) parece doer como uma ferida aberta. Na biografia Eu marcharei na tua luta, lemos:
Há momentos em que eu penso: “Ah! Eu deixei meus filhos! Eu abandonei meus filhos!” E sinto uma dor muito funda. Mas em outros momentos, reflito que, mesmo que não tivesse deixado meus filhos, talvez eu também não tivesse tido o direito de ter criado eles. Eu estava na luta para o que desse e viesse, e se a luta tivesse tido uma continuidade, eu tinha sido assassinada também, do mesmo jeito que foi João Pedro, do mesmo jeito que outros companheiros foram mortos antes dele e depois dele. (2012, p.183)
As imagens da família em luto em 1962 são, provavelmente, as últimas em
que Elizabeth aparece ao lado de quase todos os seus filhos. Valendo-se do mesmo par de fotografias, A família de Elizabeth Teixeira, sequência de Cabra realizada em 2013, por ocasião do lançamento do filme em DVD, retoma trechos da última sequência da obra-prima de Coutinho, para sondar os quase 30 anos passados desde o lançamento do filme. O extra está composto de reencontros de Coutinho com a personagem e com alguns de seus filhos, além de encontros com três de seus netos, em 2013 - eles falam sobre a própria trajetória e tematizam sua relação no tempo com Elizabeth. Além da imagem na fotografia de 1962, cada filho “reencontrado” aparece também nas imagens cinematográficas feitas em 1981 ou 82 pela equipe de Coutinho.
Diferente de Cabra, cujo final é esperançoso, a sequência mais recente expõe
uma cisão familiar, em alguma medida, irreparável (MESQUITA, 2014). Depois do
lançamento do filme, em 1984, Elizabeth não mais revira Marta e Marinês, as filhas que moram no Rio, por exemplo. Em 2013, é Coutinho quem vai reencontrá-las em Ramos, para então levar notícias das duas até a Paraíba, efetuando um movimento na direção contrária ao que fizera em 1981/82 (quando leva imagens e notícias de Elizabeth aos filhos que viviam no Sudeste). Como em Cabra marcado, é novamente o cinema que promove a “reunião” da família de Elizabeth Teixeira, portanto, virtualidade que só se realiza no próprio filme (BERNARDET, 2003)9.
“Eu marcharei na tua luta”
As histórias de Elizabeth à frente da Liga de Sapé pouco aparecem em Cabra
marcado para morrer.10 Como outras mulheres de sua geração, ela ingressou na política e na militância em função de uma relação afetiva, o que não lhe poupou dos inúmeros enfrentamentos que viveu. Sem diminuir a importância da atuação de Elizabeth como “companheira”, desde que João Pedro é assassinado sua história desmente frontalmente “a noção de fragilidade feminina tão bem implantada e institucionalizada pelo machismo”, para usar expressão de Anna Karina Bartolomeu, Roberta Veiga e Letícia Marotta (2019, p. 118). Ela passa a desempenhar na luta não um papel secundário, tipicamente “feminino”, mas de liderança: Elizabeth se torna presidente da Liga de Sapé (PB), representando milhares de camponeses, cobrando dos fazendeiros os direitos básicos que reivindicavam. Atua inclusive na linha de frente: “O que eu mais gostava de
fazer era ir para as áreas de conflitos ajudar os companheiros”11, ela conta em Mulher da terra. Simultaneamente, enfrenta outras violências impingidas a seus filhos - o atentado contra Paulo Pedro, alvejado por um tiro no rosto, e o suicídio de Marluce.
As imagens abaixo estão em Cabra marcado para morrer e registram, como
ouvimos no filme, o último comício de que ela participou antes do golpe, por ocasião da fundação de um sindicato de trabalhadores rurais nos primeiros dias de 1964. Eram ocasiões, como Elizabeth conta em Cabra marcado, de protestar contra os assassinatos de João Pedro e de outros companheiros. Por atuações como essa, Elizabeth foi presa várias vezes entre 1962 e 1964, enfrentando a violência física e psicológica e o abuso de autoridade dos policiais, com requintes de machismo e crueldade12: “Mesmo quando não me levavam presa, faziam muitas ameaças e me mandavam trabalhar dentro de casa: ´O melhor que você faz é ir para o tanque lavar roupa! Lugar de mulher é na cozinha, não é fazendo badernas!´” (ROCHA, 2009, p.119). E adiante: “Mulher-safada, mulher sem-vergonha, tenha vergonha, deixe de andar acompanhada de um monte
de machos. O seu lugar é dentro de casa, cuidando dos filhos e da casa. Não é fazendo agitação e subversão”. (p.120)

Nas imagens, Elizabeth está cercada por homens e discursa frente a muitos
outros. Situação pública insólita para o contexto: dezenas de trabalhadores rurais
ouvindo uma mulher em espaço público. Ora: ela atuou como militante uma década antes dos movimentos de mulheres que iniciaram, de modo mais organizado e ampliado, o feminismo no Brasil, em meados dos anos 1970 – mesmo que houvesse significativas experiências anteriores, como a mobilização de mulheres em torno do sufrágio, nas primeiras décadas do século XX (SARTI, 2004). Já os movimentos organizados de mulheres no campo só emergiram nos anos 1980, com a criação do Movimento de Mulheres Agricultoras, entre outros. E, mesmo que seu discurso não trouxesse uma pauta feminista – no sentido de desnaturalizar o “feminino”, denunciar opressões contra a mulher ou reivindicar direitos específicos –, sua atuação pública confrontava o lugar tradicionalmente atribuído às mulheres, como revelam as falas machistas e incomodadas dos policiais, reportadas por Elizabeth. Nesse sentido, ela parece antecipar o que Eleonora Menicucci de Oliveira (1990) sugere, ao analisar a presença das mulheres nos movimentos de bairro na década de 1970: a participação na organização popular as retirou do confinamento doméstico, questionando, de diferentes maneiras, a condição da mulher. Mesmo que a bandeira de luta não fosse propriamente “feminista”, a atuação de Elizabeth, assim como de outras pioneiras, abre caminho para a emergência de um novo sujeito político no Brasil, poucos anos depois.13
Nesse trecho de “Feminismo no Brasil: uma trajetória particular” (1988), Cynthia
Sarti parece se referir ao caso específico de Elizabeth Teixeira, conectando sua história à emergência dos movimentos organizados de mulheres no campo nos anos 1980:
Mulheres ativas politicamente não é novidade no campo. É recorrente em nossa história o fato de as mulheres, cujos maridos, líderes camponeses, foram assassinados a mando dos proprietários de terra, substituírem-nos em sua luta. O inusitado está nos encontros para discutir a situação específica da trabalhadora rural. (...) Bandeiras comuns a todas as mulheres rurais, independente das condições de trabalho nas diversas regiões do país, são a luta pela sindicalização feminina e a exigência de que o título de posse da terra seja também outorgado às mulheres, quer tenham família constituída ou sejam solteiras” (p.45).
Direitos finalmente estendidos às mulheres do campo com a Constituição
Federal de 1988, fruto de todo um processo social, político e cultural, que corresponde à consolidação do feminismo no Brasil.
O arco de Elizabeth em Cabra: reafirmações da luta
Quando o feminismo se organizava mais amplamente no país, Elizabeth já havia
sido retirada da cena pública. Perseguida após o golpe militar, que interrompe a realização de Cabra marcado para morrer, ela consegue fugir com o filho Carlos, refugiando-se em São Rafael (RN), onde vive como “Marta” durante 17 anos. Os últimos planos de Cabra marcado filmados em 1964 são também as últimas imagens de Elizabeth Teixeira antes de sua prisão, fuga e exílio. Eles prefiguram, como se sugere no filme de Coutinho, a deflagração do golpe militar no dia seguinte (1 de abril de 1964). Elizabeth olha pela janela e percebe a chegada de policiais. Volta-se para dentro e avisa a João Pedro: “Tem gente lá fora”.

Depois disso, se nosso texto correspondesse a uma montagem, poderíamos
justapor uma tela preta. De 17 anos da vida de Elizabeth Teixeira não há imagens.
Condição para a sobrevivência, podemos imaginar: não deixar rastros, “para não ser exterminada”. Na conversa de Coutinho com os filhos de Elizabeth, em 1981, em Sapé, na retomada das filmagens de Cabra, ninguém sabe de seu paradeiro. Manoel Justino, seu pai e inimigo político, sequer pronuncia o seu nome – evitar nomeá-la aparece como parte (das mais cotidianas) das operações de apagamento. Refugiada, as condições de vida de Elizabeth e Carlos nesse período são as mais precárias, como lemos em seus livros de memórias (2009 e 2012).
Dezessete anos depois, reencontrada e filmada por Coutinho (por intermédio
de seu filho Abraão), Elizabeth se reencontra com sua imagem, sai da clandestinidade, recupera sua identidade civil, e, como vemos no filme, não apenas se reconecta com o passado de militância e luta (refazendo os mesmos gestos), como transmite um corajoso testemunho da violência do poder patriarcal, na base do latifúndio e do estado autoritário, sobre si e sua família.
Importante dizer que Elizabeth se movimenta também no interior do filme,
vivenciando uma “metamorfose vigorosa”, como escreve Consuelo Lins (2004, p. 48), ou perfazendo um “arco” revelador e emblemático, como sugerem Joana Conti e Sônia Maluf (2010). Basta observarmos como o material de 1981 é montado: embora fragmentadas ao longo da montagem de Cabra, as imagens do reencontro com Elizabeth tem a cronologia da filmagem respeitada, de maneira a permitir que o espectador testemunhe um processo semelhante ao presenciado por Coutinho, “uma espécie de reencarnação da mulher corajosa e combativa que ela efetivamente foi” (LINS, 2004: p. 48). Se no primeiro dia de
filmagem ela aparece impactada e constrangida pela visita inesperada de Coutinho e pela presença do filho Abraão (que busca controlar sua fala), no segundo dia – visivelmente mais disposta – comenta criticamente sua atuação na véspera e sugere uma nova filmagem, dispondo-se a falar de novo. Atentas não apenas à história principal que se narra (a de João Pedro), mas às transformações que a própria filmagem provoca em Elizabeth, verdadeira
protagonista desse filme-processo, pesquisadoras como Joana Conti e Sônia Maluf (2010), mas também Consuelo Lins (2004), destacam esse momento no filme, que consideram decisivo. No artigo de Joana e Sônia, lemos:
Algo se produz na narrativa e nos personagens: interpelado por Elizabeth, o diretor escuta sua demanda e abre a possibilidade de que ela fale novamente, de que ela faça sua voz ser ouvida de outro modo. (...) Se o assassinato do marido, as perseguições, a prisão, a vida clandestina, haviam retirado de Elizabeth essa possibilidade, de falar em seu próprio nome, ao convocar o diretor para a possibilidade de uma nova fala, ela inaugura um novo momento em sua vida. (2010, p. 11)
Ao propor falar, nesse ato ao mesmo tempo curativo e criativo de se colocar
em discurso, Elizabeth parece experimentar uma “liberação”, como sugere Consuelo Lins (2004):
Talvez tenha sido Edgar Morin o primeiro a fazer uma relação entre uma dimensão do documentário e a psicanálise. Não no sentido literal, mas identificando no objetivo do filme a “ideia terapêutica” de que uma “comunicação pode significar liberação”. Nesses dias de filmagem em que Elizabeth narra para a câmera diferentes momentos de seu percurso, há efetivamente uma liberação dessa ordem. Ocorre uma operação de autoformulação, ou mesmo de reinvenção, a partir de fragmentos de sua vida, e essa liberação expressa o fim de um longo período de clandestinidade. (...) o que importa é o que acontece com ela no interior do filme e a partir dele: uma metamorfose vigorosa” (p. 48).
Ao mesmo tempo que vivencia esse processo, Elizabeth expõe consciência
precisa de sua condição de testemunha e do compromisso público com a memória dos que não sobreviveram à repressão: “Graças a Deus, eu estou aqui contando a história, e os companheiros que tombaram?” – ela comenta, ainda no primeiro dia de filmagem, referindo-se a João Alfredo Dias, Pedro Fazendeiro e outros companheiros mortos pela ditadura.

O movimento de Elizabeth, que surge de dentro do escuro da casa para aparecer
à janela, à luz da manhã, solicitando falar, é em si significativo e parece figurar uma espécie de (re)emergência política da protagonista, que pode voltar a falar em seu próprio nome (reivindicando justiça e melhores condições de vida para todos) (FIGURAS 10 e 11). Como escrevem Sônia e Joana:
A manutenção do título do filme impõe a presença forte de um destino incontornável que, ao final, é transgredido por Elizabeth. Ao interpelar o cineasta para que pudesse falar novamente, refazer sua narrativa, contar de novo sua história, algo de seu destino e daquilo a que estava marcada para viver se transforma. De viúva do militante, perseguida pela ditadura, que tem que abandonar os filhos e esconder o próprio nome durante 17 anos, reaparece um sujeito que retoma a voz e a fala – e reivindica que seja ouvida (2010, p.8).
Dessa interpelação se desdobra a cena no quintal em que Coutinho registra o
longo e decisivo testemunho de Elizabeth, em torno da qual “toda a narrativa circula”, como notaram as mesmas autoras (2010, p.8). Esse testemunho tão corajoso (lembremos que a ditadura ainda estava em vigência) se exprime também no corpo, na expressão admirativa do rosto dessa mulher que reconhece “o vulto dos estragos do latifúndio”, como escreveu tão bem Roberto Schwarz (1985), depois de sugerir que as entrevistas com Elizabeth são “o centro do filme” (p.33):
Quando fala na violência do latifúndio, Elizabeth vira para baixo os cantos da boca, em um gesto por assim dizer admirativo, de que estão ausentes as desgraças pessoais, o medo e mesmo o ódio. É como uma espécie de objetividade, de consideração pelo vulto dos estragos e maldades de que ele é capaz (...) Um saber tácito, de quem viu a onça, sem propaganda ou doutrina, que dá uma rara versão da luta de classes, limpa de oficialismo de esquerda (1985, p. 34).
A versão de uma mulher, poderíamos pensar, desta mulher, sobre a luta de
classes. Extraordinária é também a fala final de Elizabeth em Cabra marcado, quando, ao se despedir da equipe de cinema que parte de São Rafael (RN), ela se reconecta com a militante combativa do pré-64, refazendo gestos e clamando por melhores dias:
A luta que não pode parar, enquanto se diz “tem fome e salário de miséria”, o povo tem que lutar. Quem é que não luta por melhores dias de vida? É preciso mudar o regime, é preciso que o povo lute, que enquanto tiver esse regimezinho, essa democraciazinha aí... Democracia sem liberdade, não pode, ninguém pode.
Como escreve Bernardet, “Elizabeth diz: ‘A luta continua’. Essa frase cria uma
continuidade entre o antes-golpe e o agora, e projeta o filme para o futuro” (2013, p. 467). Quase 30 anos depois, A família de Elizabeth Teixeira estende o arco do cinema-processo de Eduardo Coutinho, sondando aquele “futuro” que voltava a se abrir com a redemocratização. Em momento comovente do reencontro, Coutinho pede que Elizabeth, com 88 anos no momento da filmagem, leia um texto que ele trouxe impresso: é justamente a transcrição do discurso final da personagem em Cabra marcado para morrer (FIG. 12 e 13).

Ao transformar a fala de improviso em texto, apresentando-o para sua “atriz”
tantos anos depois, Coutinho faz também de Cabra/1981 um arquivo, como fizera com as imagens de 1964, e provoca novamente, com a mediação do cinema, a “reconexão” de Elizabeth com seu passado, agora disposto em camadas, e a reafirmação da necessidade e urgência da luta social: “Me lembro, como poderia esquecer?”, ela diz, após a leitura feita com dificuldade. “Você ainda acredita nisso?”, pergunta Coutinho. “Acredito. João Pedro dizia que iam tirar a vida dele, mas que a reforma agrária ia ser implantada em nosso país. Quantos anos do assassinato de João Pedro? E a reforma agrária ainda não foi implantada em nosso país!”
1 Gravações que geraram dois “extras” presentes no DVD do filme, A família de Elizabeth Teixeira e Sobreviventes de Galileia’.
2 Ver Elizabeth Teixeira – Mulher da Terra (2009, organizado por Ayala Rocha) e Eu marcharei na tua luta – A vida de Elizabeth Teixeira (2012, organizado por Lourdes Maria Bandeira, Neide Miele e Rosa Maria Godoy Silveira), ambas enunciadas em primeira pessoa, a partir da edição de uma série de entrevistas
com Elizabeth.
3 Sobre as imagens de Elizabeth e de seis de seus filhos, no comício em protesto pelo assassinato de João Pedro, em 1962, Patrícia Machado escreve: “Elizabeth Teixeira se destacava na multidão ao redor não apenas pelos trajes negros, mas acima de tudo pela dura expressão que misturava raiva, seriedade e sofrimento.
Expressão que ganha força pelo enquadramento escolhido por Coutinho. (...) Elizabeth é filmada em close, bem de perto, sempre encarando a câmera que enquadra o seu rosto. A imagem sugere que o cinegrafista e a camponesa estavam muito próximos, frente a frente. (...). Coutinho produz uma espécie
de retrato marcado pela ambiguidade daquele rosto: ao mesmo tempo que manifesta uma singularidade, um gesto que se destaca na multidão, ele se multiplica em muitos outros, encarna sentimentos que atravessam os tempos. Afinal, quantas manifestações de raiva pela injustiça, pela pobreza, pelo descaso cabem na gesticulação, nessa espécie de máscara que guarda a imagem dessa mulher em luto?”
4 Importante dizer que Coutinho sempre reconheceu a importância de Elizabeth Teixeira para o filme. Em entrevista no momento do lançamento (1984), espondendo à questão de Zuenir Ventura (“A heroína do filme é Elizabeth, não o cabra do título?”), ele responde afirmativamente: “As pessoas estão inclusive dizendo que o filme pode ter um certo sucesso fundamentalmente por causa de Elizabeth e sua família. Se fosse um filme sobre o movimento camponês, sobre Galiléia, o filme não teria tanto impacto.”
5 Principal organização dos trabalhadores rurais no Brasil nas décadas de 1950 e 60, as Ligas Camponesas se iniciaram em Pernambuco, no Engenho Galileia, espalhando-se pela Paraíba e por outros estados, no período de 1955 até a queda de João Goulart em 1964. Fundada por João Pedro Teixeira, a Liga de
Sapé foi a maior do Nordeste. Segundo a enciclopédia do CPDOC/FGV, as finalidades das ligas “eram prioritariamente assistenciais, sobretudo jurídicas e médicas, e ainda de autodefesa, nos casos graves de ameaças a quaisquer de seus membros. As mais comuns eram aquelas que, contrariando o Código Civil,
obrigavam à expulsão sem indenização pelas benfeitorias realizadas (...) As lideranças pretendiam também, a médio e longo prazos, fortalecer a consciência dos direitos comuns, que compreendiam a recusa em aceitar contratos lesivos, tais como o cumprimento do “cambão” (dia de trabalho gratuito para aqueles
que cultivavam a terra alheia) e outras prestações de tipo “feudal””. Ver http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/ligas-camponesas
6 Em seu testemunho no quintal, filmado em 1981, Elizabeth rememora diálogo com João Pedro, falando como ele, em primeira pessoa: “Você e meus filhos estão aí: tirei um retrato, fica como lembrança. Mas eu não me acovardo. Sei que a minha vida eles vão tirar, tenho certeza. Eu vejo o ódio na cara do latifúndio.
Por onde eu passo, eu ouço resmungar e vejo a ira tirana que eles estão de mim. Eu sei que vou tombar, eles vão me tirar a vida. Agora tem uma coisa que eu digo a você: tiram a minha vida covardemente.”
7 “Meu pai, há muito tempo, vinha achando que o caminho era perigoso para uma mocinha e, quando terminei o segundo ano, decidiu não me matricular no terceiro ano. Minha querida professora achou um absurdo e foi conversar com ele. Mas papai era homem de “opinião” e repetiu a sua decisão - os meus conhecimentos eram suficientes para as minhas atividades na fazenda. Repetiu várias vezes NÃO. Um não que mais pareceu um trovão” (2009, p.16).
8 “Prometo, João Pedro que a sua luta, de hoje em diante, será a minha luta, prometo! Com consciência da luta ou sem consciência da luta, eu marcharei na sua luta. Darei continuidade a ela em seu lugar. Darei prosseguimento a tudo o que você fazia. Essa será a nossa resposta ao latifúndio. Assumo a sua luta para o que der e vier! Não temo mais nada, porque o pior já aconteceu. Viver ou morrer é mesma coisa para mim. Enquanto viver, vou viver para a sua luta, agora é a nossa luta! Juro! Juro diante de você!” (ROCHA, 2009, p.79).
9 Um ano depois da filmagem, e 50 anos depois da separação da família, em 2014, todos os irmãos vivos (seis dos 11 filhos de Elizabeth e João Pedro) se reencontraram pela primeira vez, junto com a mãe, no Memorial das Ligas Camponesas, por ocasião da Comissão Estadual da Verdade da Paraíba.
10 A referência a sua própria militância, depois do assassinato de João Pedro, aparece na seguinte fala de Elizabeth em Cabra marcado: “Em Brasília os deputados, junto com o presidente, achavam que eu devia substituir o lugar de João Pedro, principalmente para a manutenção de meus filhos e para que a Liga... ela engrandecesse com a minha presença, eu era a viúva do líder. E eu continuei, substituí o lugar dele com perca de vida, com perca da minha vida eu substituía. Eu substituí e trabalhava, autêntica. E na minha luta, protestar contra o assassinato de João Pedro. E não só de João Pedro, como de todos os companheiros que tombaram”.
11 “Geralmente, as caminhadas eram longas, e a gente nunca sabia o que iria acontecer. Era uma tensão danada! O grupo era sempre muito grande, porque, assim, sentíamo-nos mais seguros e impúnhamos respeito. O conhecimento que demonstrávamos ter da lei dava-nos mais segurança na hora da conversa
com os proprietários: - A Lei número tal, no seu artigo número tal diz que o fazendeiro, para despejar o seu morador, tem que marcar a data. Só pode ser após a colheita. Tem que pagar indenização pelas benfeitorias e pela moradia. Vai obedecer à Lei?! “Vai ter que pagar” na justiça. Se for à justiça, não se esqueça de que, enquanto não houver decisão, o seu morador vai continuar aqui, até a questão ser resolvida. E não vai tocar no roçado dele. Não vai não! A Liga está aqui para garantir o direito do trabalhador” (ROCHA, 2009, p. 103).
12 “Os policiais tentavam me assustar, atirando nos meus pés. Não acertavam, mas as balas passavam bem perto. Às vezes, eles me obrigavam a passar entre duas filas de policiais: de um lado e do outro e eu tendo que passar no meio deles que gritavam, quase dentro do meu ouvido, as mesmas ameaças e ofensas. Pegavam os revólveres e faziam a mira, como se fossem atirar. Covardes! (...) Eu ficava muito preocupada pelas crianças. Já haviam sofrido tanto... e ainda tinham que ver tudo isso.” (ROCHA, 2009, p.119)
13 Sem negar a pluralidade de manifestações do feminismo no Brasil, anteriores, inclusive, ao marco dos anos 70, Cynthia Sarti argumenta que, “embora influenciado pelas experiências europeias e norte-americanas, o início do feminismo brasileiro dos anos 1970 foi significativamente marcado pela
contestação à ordem política instituída no país, desde o golpe militar de 1964. Uma parte expressiva dos grupos feministas estava articulada a organizações de influência marxista, clandestinas à época, e fortemente comprometida com a oposição à ditadura militar, o que imprimiu ao movimento características
próprias” (2004, p. 36).
Referências
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tua luta – A vida de Elizabeth Teixeira. João Pessoa, Editora Universitária da UFPB/ Manufactura, 2012.
BARTOLOMEU, Anna Karina, VEIGA, Roberta & MAROTTA, Letícia. A ditadura
militar “por” e “entre” mulheres: o cinema contra o apagamento histórico em Retratos de Identificação e Setenta. Cadernos Benjaminianos, v.15, n.1, 2019.
BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. SP: Cia. Das Letras, 2003.
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MESQUITA, Cláudia. A família de Elizabeth Teixeira - a história reaberta. Catálogo do forumdoc.bh 2014. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2014.
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NICOLAU, Ana Carolina. Por um cinema da diferença - um estudo sobre a
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(Doutorado em Ciência Política) – Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.
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